14 de dezembro de 2009

As regras e o processo de aprendizagem na pós-graduação

Por Letícia Soares


O problema de aprendizagem dos alunos na pós-graduação pode ter origens na educação básica (ilustração: Paulo Henrique Soares)

Como já diziam os sábios, aprender dói. Há um considerável nível de engano para aqueles que pensam que o processo envolvido em aprender acerca de algum aspecto é indolor. Aprender exige que quem passa pelo processo de aprendizagem esteja ciente das próprias limitações e apresente dedicação e habilidade suficientes para que tais limitações não se tornem características inerentes. No entanto, existem vias mais suaves e não menos eficientes pelas quais o aluno pode passar para que as constatações e a superação de suas insuficiências sejam um processo menos traumático e de grande êxito. Uma dessas vias pode ser o estabelecimento, por parte dos educadores, de regras a serem seguidas pelos alunos durante o processo de aprendizagem. Entendem-se aqui como regras roteiros elaborados pelos educadores, que consistem em processos bem estabelecidos com um objetivo final definido. Aos intransigentes de plantão, não se preocupem. Neste caso, o estabelecimento de regras pode ser extremamente útil para resolver problemas como confusão mental, insegurança e falta de linearidade de raciocínio. Utilizando uma analogia simples, as regras funcionariam como uma caixinha dentro da qual o aluno estaria inserido. Toda vez que o aluno se deparasse com algumas das dificuldades ou erros que as regras tentam corrigir, ele esbarraria em algum ponto da caixinha. Este processo poderia ocorrer inúmeras vezes até o momento em que o aluno já conhecesse todos os pontos da sua pequena caixa de regras, as quinas, as arestas e as faces, e dessa maneira se limitasse a uma atuação segura, sem transgredir nenhum ponto da caixinha. O educador então poderia dar-se por parcialmente satisfeito ao constatar a existência de um limiar de atuações anti-erros por parte dos alunos. A parcialidade desse sucesso se justifica no sentido em que ninguém quer ser e/ou ter um aluno embrulhado num pacotinho de regras (o que significa em palavras cantadas “all in all you’re just another brick in the wall”). Além disso, o exercício da criatividade deve ser contínuo e intrínseco e a liberdade de pensamento deve ser sempre posta em prática. Justamente neste momento as regras podem se tornar tolhedoras e gerar profissionais desprovidos de criatividade. O pulo-do-gato para solucionar o problema causado pelas regras na prática criativa do aluno seria se o último saísse da sua caixinha de regras, sem, no entanto, jogá-la fora definitivamente. O ideal seria que a caixinha fosse colocada num lugar cotidianamente visível, como em cima da geladeira ou no móvel ao lado da cama. Dessa forma, o aluno sempre se lembraria das regras e do processo pelo qual ele passou para solucionar déficits de aprendizado e para adquirir algum conhecimento sem permanecer encaixotado dentro do processo.

Um exemplo da caixinha de regras é o roteiro proposto para a elaboração de relatórios no curso de campo Ecologia da Floresta Amazônica, fornecido pelo Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF). Nesses roteiros, os alunos do curso se deparam com um conjunto de regras específicas para construir cada seção dos relatórios dos projetos executados em campo, como a introdução, os métodos, os resultados e a discussão. Especificamente, o roteiro para a introdução dos relatórios sugere uma estrutura textual apelidada de ‘triângulo’. A introdução de acordo com as regras do triângulo requer que o aluno inicie seu texto com um embasamento teórico geral (base do triângulo) e vá especificando gradualmente a apresentação das informações necessárias para a compreensão do estudo (ápice do triângulo). Para quem está escrevendo seus primeiros textos, ou até mesmo para os ‘experientes de plantão’ que ainda encontram grandes dificuldades para introduzir um texto, as regras do triângulo podem ser consideradas como um ótimo roteiro para aprender a estruturar uma introdução coerente. No entanto, é importante que o aluno esteja ciente de que a estrutura do triângulo não é necessariamente adequada para elaborar toda e qualquer introdução. Neste caso, o pulo-do-gato para consolidar a eficiência da regra do triângulo seria que o aluno aplicasse o uso de tais regras, como proposto no curso de campo, mas posteriormente analisasse a aplicação das mesmas com senso crítico. Infelizmente, não só para a regra do triângulo como para a maioria das regras propostas, o pulo-do-gato não ocorre na freqüência desejada pelos educadores e, muitas vezes, os alunos sequer conseguem aplicar as regras. Aparentemente, uma ínfima parcela dos alunos compreende as regras, as exerce com sucesso e posteriormente as supera como parte de um todo um processo necessário de aprendizagem. Ainda não encontrei argumentos qualificados para questionar o uso de tais roteiros de aprendizagem e a estrutura de tais cursos, na sua maioria baseada na caixinha de regras. Porém, ao que parece ser, o problema de aprendizagem dos alunos espelhado na resistência da aplicação das regras pode ter origens pregressas aos métodos aplicados em tais cursos, podendo ter início na educação básica.

Partindo da premissa de que a caixinha de regras é um método eficiente e de que apontei corretamente a origem do problema da inadequação dos alunos à caixinha, este é o ponto em que surge um embate: como lidar na pós-graduação com problemas de aprendizado oriundos na educação primária? Uma forma pessimista (ou realista) é de considerar este um problema sem solução. Afinal, falhas na educação básica são difíceis de corrigir já que o aluno aceita há anos como adequados, conceitos e perspectivas errôneas. No entanto, nós vivemos num país que soluciona seus problemas, incluindo os educacionais, com medidas a curto prazo. Nesse contexto, porque não utilizar uma forma imediatista – e especialmente neste caso não menos eficiente – para solucionar esta questão? A estratégia seria oferecer aos alunos noções sobre didática. Uma vez dado o conhecimento das razões pelas quais uma ou outra regra esteja sendo aplicada, o processo de aprendizagem torna-se dedutivo e não somente um cumprimento de normas. Basicamente, o aluno deveria ser incitado a fazer questionamentos como “porque eu estou fazendo isto desta forma?” ou “aonde o professor gostaria que eu chegasse ao sugerir isto?”. Uma vez que as regras tenham sido interpretadas, a execução dessas ganha sentido para o aluno, que sucumbe eventuais resistências a respeito do cumprimento das mesmas, facilitando a fluência do processo tanto para o aluno como para o educador. Além disso, o maior ganho poderia ser percebido ao fim de toda a jornada, no momento em que o aluno deveria sair da caixinha e analisá-la com bom senso. Outra maneira de fazer com que os alunos tenham noções de didática é o exercício da prática de ensino. Monitorias ou qualquer outra prática de ensino feita por um aluno pode exercer uma quebra de paradigmas extremamente positiva na maneira com a qual o aluno-professor lida com o seu próprio processo de aprendizagem.

Em suma, as regras podem ser uma excelente estratégia educacional. No entanto, o uso das regras pode apresentar resultados insatisfatórios como limitação da criatividade do aluno ou a aplicação inadequada das regras. Uma alternativa razoável seria oferecer noções de didática aos alunos ou incitar que os mesmos participem de práticas de ensino. Finalmente, é de grande importância que antes mesmo de analisar as conseqüências que envolvem o uso das regras nas práticas de ensino, as causas da aplicação de tais métodos não sejam negligenciadas. As ideologias, neste caso o uso da caixinha de regras, não devem ser desligadas da realidade nas quais foram originárias. De fato, é a realidade nas quais surgem tais soluções que torna compreensíveis as ideologias elaboradas (Chaui 1982).

Citação
Chaui, Marilena. 1982. O que é ideologia? Ed. Brasiliensis S.A., 127 pp.



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