15 de novembro de 2008

Pequenos grandes rios: como muda a fauna de peixes nos igarapés amazônicos?

Estudo do Inpa mostra que, assim como nos grandes rios, a fauna de peixes dos pequenos igarapés amazônicos sofre mudanças ao longo do ano.
Por Helder Mateus

Há pelo menos um século e meio, desde a expedição do naturalista inglês Alfred Russel Wallace (foto) pelo Rio Negro, a vida e história natural dos peixes dos grandes rios amazônicos vêm sendo desvendadas. Tantos anos de investigações geraram conhecimento sobre a distribuição das espécies de peixes nos diferentes tipos de rios, sobre comportamento de reprodução e alimentação, taxas de consumo humano e uma diversidade de temas. Sabe-se atualmente que os peixes nos rios têm uma relação muito forte com o ciclo da chuva na região amazônica. Por exemplo, algumas espécies de peixes, como os grandes bagres, durante o período chuvoso migram ao longo dos rios, às vezes chegando até as suas cabeceiras em busca de locais adequados para reprodução. Outras espécies, como o tambaqui, saem do canal principal dos rios e vão para as florestas de igapó ou de várzea, tanto para se alimentar quanto para reproduzir no período de águas altas. Todos estes processos, desencadeados pelo aumento e diminuição do nível dos rios, resultam em grandes diferenças na fauna de peixes encontrada ao longo de um ano em cada local.

Os igarapés de terra-firme são a principal fonte de água para os grandes rios amazônicos. No entanto, o conhecimento sobre os peixes nestes pequenos corpos d'água são ainda muito restritos, quando comparado aos grandes rios. Isto acontece principalmente devido à maior dificuldade de acesso destes pequenos riachos, que geralmente estão “escondidos” sob a densa floresta de terra-firme. Por estarem em áreas um pouco mais elevadas, os igarapés não são afetados diretamente pelas cheias e secas dos grandes rios. As mudanças nesses ambientes são mais sutis. Durante fortes chuvas locais, a água que escorre pelo chão da floresta aumenta o volume dos igarapés, revolvendo os substratos ali presentes e deixando a água turva. Frequentemente, os
igarapés transbordam e as áreas mais baixas podem ficar inundadas, dependendo da intensidade da chuva e da topografia local. Entretanto, algumas horas após uma forte chuva, é possível notar o volume da água diminuindo, que vai ficando mais transparente e tranquila, até que as condições ali voltem àquelas de antes da chuva.

Geralmente, os igarapés tem águas transparentes, mas ficam barrentos logo após chuvas intensas (imagem da direita).

Com mudanças tão passageiras comparadas ao que acontece nos grandes rios, não era esperado que a fauna de peixes nos igarapés de terra-firme mudasse muito ao longo do ano. Até então, estudos relatavam pouca ou nenhuma diferença na fauna de peixes entre a estação chuvosa e a estação seca nestes ambientes. Contudo, isso não é necessariamente verdade. No meu [
Helder] mestrado, desenhei junto com meus orientadores, William Magnusson e Jansen Zuanon, um projeto de amostragens sistemáticas de peixes e características ambientais ao longo de um ano completo (SET de 2005 a AGO de 2006) em 31 igarapés da Reserva Ducke, localizada ao norte de Manaus. A Reserva Ducke é um local de pesquisa permanente do Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio), um programa do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Os peixes capturados ao longo das amostragens foram identificados em campo, contados e devolvidos aos igarapés. Isso só foi possível porque a reserva tem anos de pesquisa acumulada, permitindo que usássemos um guia de identificação de espécies provisório, mas que está em processo de produção.

Em geral, a quantidade de peixes capturados no período chuvoso foi menor que nos períodos secos.

Algumas espécies, como o pequeno “rivulídeo”
Rivulus kyrovskyi, tiverem três vezes ou mais indivíduos nos igarapés durante as estações secas, comparado ao período chuvoso.

Outras espécies, como o “mussum” Synbranchus sp., foram mais abundantes na estação chuvosa.

As diferenças de abundância das espécies entre as estações do ano resultaram em grandes diferenças na fauna de peixes entre a primeira estação seca e a estação chuvosa, mas na estação seca seguinte a abundância das espécies ficou parecida com aquela encontrada na primeira seca.


(R. kyrovskyi [alto] e Synbranchus sp. Fotos: Fernando Mendonça).

Então surgiu a pergunta:
o que acontece com estes peixes durante o período de chuvas? A resposta “deve estar nas poças”, pensamos. Durante o período chuvoso, os igarapés transbordam e a água vinda dos platôs formam conjuntos de poças temporárias, que podem permanecer com água por até 11 meses ao longo do ano. Estudos anteriores mostraram que estas poças mantêm uma diversidade de invertebrados, anfíbios e também de peixes. As espécies de peixes presentes nelas dependem de sua profundidade e do tempo em que permanecem com água. Uma pequena poça de apenas um metro de circunferência pode ter de uma a até 10 espécies diferentes de peixes. Uma possibilidade é que a diminuição do número de peixes nos igarapés no período chuvoso acontece porque algumas espécies muito abundantes “se mudam temporariamente” para estas poças. Segundo esta hipótese, os peixes utilizariam as poças durante o período chuvoso para alimentação e reprodução e, quando as poças começam a secar, os peixes tenderiam a retornar aos igarapés. Um novo estudo está sendo desenvolvido para avaliar esta hipótese. Algumas espécies não utilizam as poças temporárias e as diferenças em abundância ao longo do ano devem estar associadas a outros processos biológicos, como reprodução diferenciada ou pequenas movimentações no próprio canal dos igarapés.

Levantamentos sobre a composição da fauna de peixes são geralmente utilizados na elaboração de planos de manejo em Unidades de Conservação, em Estudos de Impacto Ambiental (EIA), em monitoramentos da integridade ambiental em áreas sob o uso humano, na avaliação de estoques de recursos pesqueiros, entre outros. Com base nos resultados do nosso trabalho, é muito importante enfatizar que
estudos sobre peixes de pequenos igarapés amazônicos realizados em diferentes estações do ano não devem ser comparados sem considerar estas diferenças temporais. Assim, espera-se que mudanças sazonais não sejam confundidas com tendências de longo prazo, evitando conclusões equivocadas e a sugestão de opções inadequadas de manejo para a conservação dos peixes amazônicos.

Estes resultados são parte da minha
dissertação de mestrado, desenvolvida com recursos da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza e do Programa BECA/IEB.

Eles acabaram de ser publicados
online em forma de artigo na revista Freshwater Biology.

Confira!

4 comentários:

Rafael Leite disse...

Olá Helder, parabens pelo trabalho.
Pergunta: Já que, em geral, a abundância dos peixes diminui na estaçao chuvosa, voce acredita que isso pode ser influenciado pela amostragem, com área e volume potencial maiores para amostrar na chuva? Outra: Como é o turnover de especies ao longo do ano nos igarapés?
Saudaçoes

Helder disse...

Fala, Rafael, obrigado.
O que defendemos com este trabalho é que, sim, existe uma expansão da área de vida dos peixes durante o período chuvoso na terra-firme e, por isso, sua detecção no canal principal do igarapé é comprometida. Se não considerarmos as movimentações dos peixes para estas novas áreas durante as chuvas, teremos a tendência de subestimar a diversidade, além de outros possíveis vieses [por exemplo, como algumas espécies utilizam de forma diferenciada as poças e igarapés de acordo com sua fase de vida, dependendo da época de amostragem e do comprimento do ciclo biológico da espécie, conclusões equivocadas quanto à estrutura populacional podem ser tomadas se não considerarmos todo o baixio como sua área de vida]. Estou continuando o estudo, agora amostrando simultaneamente igarapés e seus ambientes alagáveis marginais (poças temporárias e permanentes e alagados conectados aos igarapés), para testar se as tendências gerais observadas para o canal principal se mantêm se considerarmos os dados juntos de abundância das espécies nas poças.

Com relação ao turnover, o que percebemos até agora é que não existe uma substituição entre espécies mais abundantes (para as quais temos maiores probabilidades de detecção). Mesmo aquelas que reduzem muito em abundância nas chuvas, não deixam de ser detectadas neste período no canal do igarapé. As maiores diferenças estão relacionadas a espécies muito pouco abundantes e freqüentes. Olhando no geral, ou seja, para toda a área de estudo, 17 espécies (31% do total) ocorreram em apenas uma das 3 amostragens e 5 (9%) em apenas duas. Estes dois grupos somados representam 1,1% do número total de indivíduos capturados durante o estudo. As demais (+-60%) apareceram nas 3 ocasiões de amostragem. Contrário do que acontece em igarapés mais pŕoximos aos rios, as espécies que apareceram esporadicamente não constituem migrações longitudinais de espécies dos rios, mas sim um artefato de amostragem relacionado à baixa densidade real deles na área. Em geral são espécies encontradas ao longo do continuum, mudando de densidade de acordo com a região estudada.

Abração,
Helder.

Rafael Leite disse...

Fala Helder, obrigado pelos esclarecimentos.

Letícia Soares disse...

Permutation!