30 de junho de 2009

Carefull with that axe Eugene!

Por Flávia Costa

Quem conhece a música de onde esta frase vem (Pink Floyd) vai talvez se surpreender com o texto que vem a seguir. Mas foi a analogia que me veio à cabeça quando comecei a pensar em como lidamos com as opiniões e gostos alheios. No fundo, temos um machado em nossas mãos, e a maioria de nós não percebe isso. Só que o resultado pode ser desastroso, contando inclusive com decapitações...


Imagine a seguinte situação. Você acabou de ler um livro que achou sensacional, e quer muito repartir esta descoberta com outras pessoas. Você então empresta o livro a uma pessoa, que depois de lê-lo o devolve, dizendo: Lixo! (pode respirar fundo...). Dependendo de quem é esta pessoa, você quase certamente não vai nunca mais sugerir qualquer coisa a ela, ou manifestar qualquer opinião sua. Ela já o decapitou. Mas imagine que era um bom amigo, ou uma pessoa que você respeita muito e você então pensa que esta opinião pode ter sido fruto de mau momento na vida dela, ou que ela pode saber muito mais que você. Então você até pode querer discutir com ela sobre esta opinião. E ainda vai querer compartilhar com ela outras opiniões no futuro. Mas continue imaginando (e pra quem já viveu isso é bem fácil imaginar) que a situação se repete, com outras nuances, mas sempre com o mesmo resultado – esta outra pessoa sempre nega suas opiniões e idéias. A não ser que você seja um Buda (ou esteja a caminho de se tornar um), o resultado mais provável é que você vai se afastar desta pessoa. Mais uma decapitação de um machado guiado por um cego!

A estória ilustra de forma bem pessoal um problema que estende bem mais além do que a vida pessoal, pois somos pessoas vivendo e trabalhando em sociedade. O machado cego é capaz de cortar exércitos, como grupos de trabalho, associações beneficentes, políticas e outras que tais.

Lidar com opiniões e gostos alheios não é um esporte de força bruta, onde ser o mais veloz, o mais forte, o melhor a pegar a bola, marcar o gol e ganhar – sempre ganhar! – é o objetivo. Num esporte do tipo força bruta, impor sua opinião é o que importa.

Muitas vezes lidar com opiniões se transforma num jogo social. Só que neste jogo nem sempre se está muito interessado em que opiniões estão de fato sendo defendidas ou rebatidas, e o verdadeiro esporte é discutir e argumentar. No fim do jogo os atletas muitas vezes nem lembram quais eram as opiniões originais e o resultado é que todos estão mais conectados entre si (mais amigos?) do que estavam antes, por terem repartido suas idéias. Dizem que os gregos eram craques neste esporte, mas eu ouso sugerir que os brasileiros são campeões. Se não me engano foi o Fernando Sabino que disse que discussão em “mesa de bar” é o verdadeiro esporte nacional brasileiro. Nesta situação, o debate tem caráter educativo ou social, e o resultado geral é positivo, sendo um empate acordado praticamente desde o princípio do jogo.

O problema é quando as opiniões em discussão realmente importam para seu dono. Neste caso, controlar o fio do machado requer uma força muito maior que a necessária para segurar o machado (sustentar uma opinião). Uma força que podemos chamar talvez de maturidade, que envolve a compreensão de que pode ser necessário perder para ganhar. “Perder”, lembremos, significa admitir a opinião alheia.

O problema surge por pelo menos duas razões. A primeira e mais básica é que somos seres vivos e só existimos por que ganhamos! Toda a sequência evolutiva, desde as bactérias, que levou à sua ou à minha existência foi uma sequência de vitórias, ou nem eu nem você estaríamos aqui. Perder, portanto, não é natural. E como em muitas outras situações em que se analisou o comportamento humano, contrariar os “genes” pode requerer centenas de anos de domesticação... (como exemplo, a “sociedade” vem tentando ensinar os genes masculinos a serem monogâmicos há séculos. Sem muito sucesso até onde sei). A segunda razão, é que o que se perde é diferente do que se ganha, e a percepção desta diferença é sutil. Num exemplo clássico, deixar que a opinião do outro prevaleça (perder a discussão e talvez desdobramentos políticos ou de trabalho associados imediatamente) pode ter como ganho a confiança ou a receptividade do outro no futuro. São escalas de tempo e de valores diferentes, o que é difícil para a maioria das pessoas perceber (em geral os mais velhos é que tem esta percepção. Mas acredito que qualquer um pode desenvolvê-la se quiser).

Tenho duas opiniões (opa!) sobre a solução para este problema:

1. Séculos de domesticação consciente serão necessários para fazer a humanidade ser capaz de lidar com os fatos básicos da sua existência – cada ser é diferente, mas a existência só é possível por isto mesmo. Até onde sei, a evolução ainda não inventou nenhum ser capaz de ser bom em tudo e sobreviver sem ajuda (não necessariamente intencional!) de outros. Talvez as bactérias? (caso a se pensar). Se a existência depende da variabilidade, admitir e respeitar opiniões diferentes é o único caminho para a sobrevivência. Corolário: nossas crianças precisam aprender muito mais do que matemática ou geografia e deve estar passando da hora de assuntos como relacionamento social serem parte do sistema educacional (algumas empresas já perceberam a importância disso e contratam psicólogos ou outros profissionais do gênero para atuarem como moderadores, facilitadores e outros “ores” que basicamente tem a função de ajudar a segurar os machados).

2. Cada um de nós não precisa esperar ficar velho para começar a exercitar a capacidade de ouvir mais e pensar mais antes de retrucar. Já demorou!


PS. À guisa de explicação para aqueles que estão se perguntando por que estou falando de um tema em princípio nada científico ou ecológico nesta coluna, digo que lidar com opiniões e gostos alheios tem um efeito mais forte nas nossas vidas científicas do que pode parecer ao incauto observador externo. A ciência não é neutra nem muito menos o fazer científico. E tenho dito!

Se você já leu até o PS pode aproveitar e ler os agradecimentos (ou reconhecimento) às pessoas que me fizeram pensar mais profundamente (e positivamente) neste assunto (a ordem não denota importância): Rita Mesquita, que em palestra recente muito bem colocou que um dos maiores talentos do profissional que quer influenciar políticas públicas é “saber perder uma batalha para ganhar a guerra” (não gosto da idéia de guerra, por isso adaptei lá em cima só como perder para ganhar); Genimar, Felipe e Analu, com quem a convivência várias vezes me colocou na posição do decapitador, mas que a amizade e um pouco de meditação salvaram (não é só Jesus que salva não!); Meus alunos (toooodos), pela razão simples de que alunos gostam mesmo é de discordar; Ana Tourinho, JuJu Schietti, Carlota, Manoela, Serginho, Renata e devo estar esquecendo alguém (...) por conversas recentes em torno do tema.

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4 comentários:

Bebezinha disse...

Flavia, gostei muito das reflexões e acho que tem tudo a ver com o meio científico inclusive... neste caminho de "vitórias" para o ser humano existir, ele ainda terá que provar (com atitudes, não na mesa de bar) que é sustentavel ambiental e socialmente... Parabéns!

Julio disse...

É... Flávia, todos precisamos desenvolver a habilidade de expor idéias sem ofender, tanto quanto ouvir sem se melindrar.

É difícil, mas eu acho que é justamente aí que está a graça da vida e a vida acadêmica não seria diferente...

Beijos,
Julio

Paulo Costa disse...

Flávia, Parabéns pelo texto. A metáfora é profunda e poucos sabem o poder do machado que empunham. O tamanho do machado deveria ser proporcional a capacidade da pessoa em manipulá-lo, mas infelizmente, muitas pessoas fazem de tudo para ter um grande machado e quando o conquistam, usam-no inadivertidamente.

Beijos,
Paulo Costa.

Rodrigo disse...

Flávia, o "polemista" aqui vai ter que discordar mais uma vez: os brasileiros ganharem dos gregos em discussão? Por causa da mesa de bar? Francamente! E pelo mesmo motivo que você colocou: "sendo um empate acordado praticamente desde o princípio do jogo". Ou seja, não se discute para aprender, nem para ensinar, mas para "passar o tempo"...

Concordo com a idéia de "perder uma batalha para ganhar a guerra", mas nosso maior problema cultural é ninguém combater os dogmas religiosos (somos ateus, mas ateus calados - ou seja, perdemos todas as batalhas e, até agora, a guerra). E costuma-se acreditar que o problema está diminuindo (ao que vejo, só tem aumentado), como também que "religião não se discute". Eis a causa da discussão já começar empatada, ou melhor, perdida.