15 de dezembro de 2008

Sobre padeiros, pedreiros e cientistas

Por Thaise Emilio e Helder Mateus

Quando lemos "Legal, mas pra que serve isso?", texto de Aline Lopes, nos identificamos imediatamente. É recorrente para nós pesquisadores (ou aspirantes a) ao escrever um projeto, ou descrever resultados de um trabalho, ou ler um artigo, e em vários outros momentos, parar e fazer exatamente este mesmo questionamento: Tá, mas pra que serve isso??? É um questionamento importante, e se não temos a capacidade de fazê-lo estamos fadados ao enfado. Entendemos que cada organismo vivo tem seu papel no funcionamento do planeta, nem que seja acumular um 'carbonozinho' por um tempo (de segundos a centenas de anos) e depois repassá-lo a outros componentes do ciclo. Isto não justifica a mediocridade, claro, mas o que queremos dizer é que existem padeiros, pedreiros e cientistas.

Desde que o mundo é mundo cada um tem uma função a desempenhar. Nas longíqu
as aulas de história aprendemos que esses papéis vão mudando conforme evoluem as sociedades. Nas sociedades coletoras-caçadoras alguns eram responsáveis pela caça e outros pela coleta de frutos. Na idade média eram tempos de reis, senhores feudais, vassalos, servos... e assim vai... O tempo passou, ainda temos que ter uma função a desempenhar, mas o papel social do que fazemos não é mais tão claro quanto era na idade da pedra. Aqui, alguns de vocês devem estar pensando que estamos equivocados, afinal é muito clara a função social de um padeiro, de um pedreiro. Mas para que exatamente serve o trabalho de um físico, historiador, biólogo ou de qualquer outro cientista? É fácil pensar no 'porquê' de profissões que estão diretamente relacionadas com nossas necessidades cotidianas, em profissionais que quando não estão ali sua ausência é imediatamente sentida. Compartilhamos aqui lembranças das greves intermináveis da época da faculdade, daquelas que só acabavam quando comprometiam o vestibular, e de quando pensávamos que essas greves não seriam tão longas se fossem lixeiros (ou padeiros!) e não professores que estivessem parados. Nossas necessidades cotidianas são necessidades concretas e muito distantes das questões abstratas dos cientistas.

Temos que concordar que não é simples pensar no trabalho abstrato dos cientistas como tijolinhos de uma construção maior, que é o conhecimento da humanidade. Para entender melhor isso, basta perguntar para um feirante qual a utilidade do estudo dos movimentos planetários feitos por Kepler no século XVII para a sua atividade, é pouco provável que ele faça um discurso sobre a influência desse trabalho para a formulação de lei da gravitação universal por Newton e que sem aquilo as balanças digitais não seriam possíveis e bla-bla-bla... Onde queremos chegar com isso é: muitas vezes quem não é cientista não entende a ciência como parte do mundo, assim como os cientistas se esquecem que são parte da sociedade, como bem lembrou o Daniel Munari (o Mindu) na última reunião dos jovens cientistas da ULE. Cada um vive bem no seu mundinho e quando cientistas precisam do resto da sociedade ou quando o resto da sociedade precisa dos cientistas é que nos damos conta que falamos línguas completamente diferentes. Mas por que isso acontece? Quando foi que nos separamos do resto do mundo?

Estamos, nós cientistas, acostumados a viver cada dia num mundo mais complexo de questionamentos profundos, análises estatísticas mirabolantes e o tempo se encarrega de deixar alguns de nós completamente alienados. A alienação é importante para a concentração e só por meio da concentração é que conseguimos lidar com problemas complexos que fazem parte do nosso cotidiano. Mas nem sempre voltamos desse mundo 'imaginário'. Muitas vezes não conseguimos resgatar nosso objetivo inicial (aplicado ou não) ou traduzi-lo para os demais interessados. Mas isso também não é tão fácil assim como parece.


Acontece, e acontece muito mesmo, que nem todo o conhecimento que geramos é imediatamente útil para a sociedade como um todo. Muito do que produzimos é útil para os nossos pares (outros cientistas) e será útil para a sociedade como um todo décadas mais tarde. Uma história clássica ilustra isso que estamos falando. Quando Isaac Newton (o mesmo de dois parágrafos atrás) foi questionado sobre como é que ele tinha conseguido ver tão longe ao formular a lei universal da gravitação a partir da simples queda de uma maçã, ele respondeu que tinha conseguido enxergar longe porque se apoiou no ombro de gigantes, referindo-se aos conhecimentos gerados por Kepler e Galileu um século atrás.


Existem problemas seríssimos para serem resolvidos todos os dias (toda a questão ambiental é um bom exemplo disso), mas bem sabemos que se toda a ciência produzida fosse somente ciência aplicada, em pouco tempo deixaríamos de enxergar longe por não existirem mais 'ombros' para nos erguer. A situação descrita pela Aline em "Legal, mas pra que serve isso?" é um exemplo de como está deficiente a comunicação entre os cientistas e a sociedade como um todo. Falamos isso porque o trabalho da Aline é um dos mais aplicados por aqui e se explicar um trabalho aplicado não foi fácil, imagine só explicar algo como um trabalho de ciência básica? Um sofrimento!


Essa coisa toda de pensar a divulgação científica como um dos pontos mais importantes do 'ser cientista' tem assumido um papel muito grande em nossas vidas recentemente. Diariamente nos angustiamos ao saber que algumas coisas poderiam ser feitas de melhor forma se as informações científicas chegassem aonde deveriam. Ao refletir sobre o porquê disso, chegamos a duas conclusões: a primeira é que somos culpados e a segunda é que, como culpados, podemos tentar nos redimir e mudar o modo como divulgamos ciência.

De maneira muito pertinente, o geólogo português Dr. Galopim Carvalho (foto), ex-diretor do Museu Nacional de História Nacional, da Universidade de Lisboa, discorre em seu texto "Ciência e Sociedade", sobre a importância da divulgação científica como elemento potencializador da capacidade de intervenção consciente do cidadão, quaisquer que sejam as suas funções ou vocações no tecido social em que se insere. Nesse sentido, acreditamos que a divulgação científica cabe muito bem aos nossos propósitos já que tiraria o peso de “detentores do conhecimento” das nossas costas e distribuiria isso por toda a sociedade. Acontece que pra divulgação científica ser eficiente é preciso simplificar e isso é tão estranho ao nosso dia-a-dia quanto ‘macrófitas aquáticas’ para taxistas.

Acreditamos que o primeiro passo desse processo de simplificação deve ser identificar para quem é útil o conhecimento gerado por nossa pesquisa. Isso porque nem todo conhecimento gerado é passível de ser traduzido para todos os públicos e não adianta forçar a barra. Por mais aplicada que seja uma pesquisa, os conhecimentos gerados fazem parte de pelo menos três universos distintos: aquele conhecimento basal que teve que ser gerado para servir como base para responder a sua pergunta mais aplicada, o conhecimento metodológico que será útil para outros pesquisadores que vierem a estudar assuntos relacionados e o conhecimento imediatamente aplicável. E aí sim, o conhecimento gerado e traduzido pode ser trazido de volta para outras camadas da "sociedade", tanto para aquele taxista como para os nossos pais ou para os ribeirinhos ou comunitários da área onde trabalhamos. Com isso, talvez ouvíssemos tantos “Legal, mas pra que serve isso” quanto padeiros e pedreiros.




[thaise.emilio@gmail.com & espiritosantohm@gmail.com]

Um comentário:

Catá disse...

Tat'a e Helder, boa iniciativa! Espero que as cutucadas nao parem por aqui. E aproveito o ensejo:
Sempre que me perguntam, ou eu me pergunto: "Legal, mas para que serve isso?" Eu penso provocativamente: "Olimpiada 'e legal, mas para que servem os atletas?" O governo e muitas empresas gastam algum dinheiro com atletismo, judô, natação, tênis, etc. Está certo que os atletas penam um bocado pra conseguir essa grana, mas acho que o reconhecimento da sociedade é inegável. Reconhecimento esse nao so do esforco do atleta em si, mas tambem do exemplo que ele passa, principalmente para os jovens. Faço então um paralelo (meio esquisito) com a divulga'cao da ciência...como um exercício intelectual, como um incentivo aos questionamentos, `a decoberta de macro e micro mundos fantasticos, `a construcao de ideias. E eu esperaria que isso nao se restrinjisse apenas aos jovens leitores de SuperInteressante, mas que atingisse qualquer leitor que n~ao se interessa por tudo, mas pode se interessar por algo que ele nem sabia que existia.
Pra mim, o mais importante nao 'e que o leitor entenda o que 'e o xilema ou o floema, mas que perceba como existe um complexo mecanismo de manutencao das plantas, e que isso desperte interesse e respeito. 'Ardua tarefa...tomara que um dia a gente consiga! ...