11 de novembro de 2008

O matador de passarinhos: separando o joio do alpiste

O conhecimento humano é mesmo muito vasto. Sabemos como ir à Lua, como escrever uma peça de teatro, a usar veneno de sapo para caçar. Sabemos! No plural: os seres humanos sabem. Eu sou um desses, logo eu sei? Não sou nenhum Neil Armstrong, nem William Shakespeare, quem dera um Yanomami. Bem que eu gostaria. Mas eu sei que eles sabem algo que eu não sei. Se um alienígena chegasse ao planeta agora, eu teria orgulho em contar para ele que o rádio foi uma grande invenção que revolucionou a comunicação entre as pessoas. Mas se foi Guglielmo Marconi que aprimorou idéias malucas de James Maxwell sobre ondas eletromagnéticas que se propagavam no espaço, idéias que foram testadas por outra pessoa, Heinrich Hertz (foto) em 1888, seria justo citar apenas um inventor para o rádio? Sabemos, no plural, pois individualmente sabe-se muito pouco, quase nada sobre a maioria das coisas. E a essência da ciência é essa. Nada mais que um acúmulo coletivo de experiências, buscando um meio objetivo de tentar entender o mundo em que evoluímos.

Pouco mais de um século depois, outro grande invento da humanidade deu à comunicação asas velozes do tamanho do mundo. E a produção de ciência acompanhou a ascensão da internet e dos gigabytes. Não existem apenas mais pessoas fazendo pesquisa, cada pessoa faz mais. A comunicação online foi a alavanca dessa conquista, mas em geral os pesquisadores brasileiros exploram pouco os recursos da web. Se por um lado cada pesquisador cumpre sua função publicando suas idéias e resultados relevantes em revistas de alto fator de impacto, 'peer reviewed' com um corpo editorial rigoroso, isso está perfeitamente correto. Isso é lastro científico. Porém, por outro lado, a comunicação científica complementar desses mesmos resultados para o restante da sociedade em veículos especializados fica relegada ao terceiro plano, à penúltima página da agenda, a uma idéia lembrada em um momento inoportuno. Infelizmente, muitas vezes os responsáveis pelas pautas jornalísticas cometem gafes com imprecisão, são apressados e não permitem a revisão de conteúdo antes de apertar a tecla PRESS. Contudo, algumas vezes, alguns jornalistas cometem delitos dignos de mea culpa.

Um exemplo fresquinho vem de uma entrevista na revista Época sobre o pesquisador Alexandre Aleixo (foto), do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Ainda que o conteúdo das respostas de Aleixo reflita a experiência e profissionalismo de alguém que é "apenas" o curador da coleção de aves do MPEG, a abordagem da entrevistadora induz o leitor de forma subliminar a se armar contra um absurdo óbvio: estão matando passarinhos indefesos e chamando isso de ciência. A repercussão não foi das menores: a entrevista, publicada em 31/10/08, foi a mais comentada na última semana no site da Época. A Assessoria de Comunicação do MPEG escreveu uma resposta ao editor da revista protestando com toda a razão. Aparentemente, tomando alguns comentários a esse artigo e o posicionamento incisivo da entrevistadora, o público não tem uma idéia clara da realidade de pesquisa básica sobre biodiversidade, seja na Amazônia ou em qualquer outro lugar do mundo.

Esse tipo de desserviço jornalístico à imagem de cientistas brasileiros idôneos e produtivos não deve ficar impune, mas sim gerar uma revolta inteligente por parte dos pesquisadores, uma revolta tranquila, que os leve a tomar as rédeas da comunicação dos resultados de suas pesquisas à sociedade. A ignorância leva ao medo. E o medo ao erro. Pois bem, um bom modo de vencer o medo é dialogar com as pessoas sobre nosso trabalho, usando canais de divulgação rápidos, precisos e eficientes. Este blog [ULE, União Local de Ecólogos (Inpa)] é um exemplo metafísico (e gratuito) que isso não é tão inacessível assim. Acreditamos que isso aumentará muito a visibilidade do nosso trabalho. Um jornalista especializado em meio ambiente me escreveu recentemente: "O blog é bem interessante. Primeiro, porque é um canal de divulgação rápido e preciso; segundo, porque facilita a vida dos repórteres, dado que a maioria dos pesquisadores tem pouquíssimo tempo para atender a jornalistas e com o blog a informação é mais rapidamente divulgada. Boa iniciativa. Espero que prospere. Qualquer novidade é só entrar em contato."

Parcerias entre jornalistas e pesquisadores devem ser estimuladas, sempre buscando devolver ao público um pouco do investimento; afinal muito dos recursos que bancam as pesquisas são públicos. Críticas saudáveis sempre serão bem-vindas, mas abordagens infantis dentro de um periódico do escopo da revista Época devem ser rechaçadas com veemência.

6 comentários:

Daniela disse...

Mto bem escrito o post. Parabéns.

Realmente a falta de profissionalismo da Revista Época foi inaceitável.

Espero que mais pessoas visitem teu blog, porque talvez para elas as coisas fiquem mais esclarecidas. Pelo o que percebi nos comentários, as pessoas apenas postam, nao se preocupam em ler os comentários de todo mundo, atentamente.

É complicado mesmo, lidar com um público leigo, mas o mais irritante, com certeza são os pseudo-especialistas, que dizem que somos atrasados em termos métodos de pesquisa.. e blá blá..

Essas coisas irritam mesmo.

Saci disse...

Pessoal, o Inpa ainda está bloqueando a entrada de comentários e posts dentro da rede do Instituto, entao eu me ofereço a postar comentários em nome de outros autores. Segue comentário do Julio sobre esse texto.

Julio do Vale escreveu:

"Saci,
você conhece aquela música do Raul Seixas, quando no fim de uma estrofe ele diz "pare o mundo que eu quero descer".

Pois é, ontem um amigo lá da USP estava batendo um papo comigo pelo GTALK e também estava indignado com a tal matéria, me enviou o link e eu fui ler. Respondi que não via nenhum problema na reportagem, que aquele título era apenas um chamariz, coisa de mídia de grande circulação. Esse amigo então tirou um sarro, e disse que eu devo ter um entendimento diferente da maioria das pessoas, e pediu que eu fosse ver os comentários.

Impressionante! Realmente, os comentários, a maioria deles, me deixaram absorto. É IMPRESSIONANTE A CAPACIDADE DAS PESSOAS DE CHEGAREM A CONCLUSÕES COMPLETAMENTE ALHEIAS AO TEXTO. Somente com muita ginástica e malabarismo de interpretação o sujeito poderá entender aquela matéria como uma crítica ao trabalho que foi reportado.

E neste caso, de uma leitura míope, meu amigo, não há o que fazer... nem os melhores argumentos adiantariam! E por falar em argumentos, vou selecionar alguns trechos da reportagem:

"Um dos maiores especialistas em aves da Amazônia diz por que continua abatendo animais a tiros"
"Os animais abatidos são... levados para...Museu Goeldi... uma das mais importantes fontes de pesquisa sobre a biodiversidade da Amazônia."
"Cientistas como Aleixo afirmam que isso é imprescindível. "O sacrifício de animais é importante para as pesquisas de preservação das florestas e para o desenvolvimento de produtos na área de saúde""
"O sacrifício é o último recurso. Em lugares pouco estudados, como a Amazônia, é uma ferramenta indispensável de pesquisa"

Desafio alguém a recolher no texto, qualquer coisa que desautorize os trechos reproduzidos acima. Não há. E por que digo isso tudo? Porque quero chamar a atenção para a motivação do debate que se levantou. A fonte disso tudo, ou é uma leitura rápida do título da matéria sem ler o restante e um seguido alarido injustificável, ou é o ativismo daqueles que arriscam a vida para salvar a mosca azul do morro de Itaperipopóca, mas sequer lembram-se de separar o lixo em casa. Fora esses casos não há razão alguma para se indignar com o texto, ou me mostrem lá o que tem de crítica ao pesquisador ou a atividade de coleta de exemplares.

Saci, PARE O MUNDO QUE EU QUERO DESCER!!! rss...

Abraços, Julio"

Fabricera disse...

Bem colocado Julio. Acho que os leitores precisam de mais "interpretação de texto" e menos "ativismo de inércia". Não consegui encontrar no texto (tirando o título é claro), passagens depreciativas ao trabalho do Alexandre Aleixo.

Mas democracia é isso, e é bom que continue assim. Como já disse meu velho amigo de uma perna só, temos que olhar para esse resultado e tentar reverter. Temos que nos comunicar mais com a sociedade não acadêmica. Só assim eles terão mais argumentos para julgar certos procedimentos.

Fernando Madruga disse...

Eu até cheguei a escrever um monte de coisa pra argumentar a favor dos que não podem fazê-lo mas, num blog de raposas, defender os direitos da galinha é perda de tempo.

Penso que, em geral, mata-se primeiro pra ver o que vai se fazer depois. Sabe com'é: pra não perder a viagem.

O enfoque dado pela jornalista, na minha opinião, foi pra lá de tendencioso. Aleixo caiu numa "arapuca". Respondeu o que tinha que responder e ela usou da forma que o editor da Época falou pra fazer.

Realmente precisa de muita interação do meio científico com o resto do mundo pra fazer a gente (resto do mundo) entender o motivo e/ou necessidade de as coisas serem como são.

É importante conhecer o que se quer preservar, não discuto isso, mas olhando aqui de fora parece que dava pra ser diferente, menos "sangue nos óio".

Eu realmente não consigo entender o porquê da necessidade de 50, 100, 200 exemplares da mesma espécie numa gaveta de Coleção. Com 10 não daria pra avaliar morfológicamente?

Pode ser óbvio pra quem arma as redes ou dá o teco na cabeça da Ararinha Azul do Alto Seilá, mas pro resto do mundo é uma pruta crueldade.

O nosso caro Júlio do Valle me disse certa feita: "Se você visse a brutalidade de uma cezariana não acreditaria que o moleque sai vivo!" (ou algo assim!).

A natureza é bruta, o homem é bruto, a novela das oito é bruta. Só há que se ter cuidado com os excessos.

Na minha opinião, vocês cientistas deveriam publicar livros, muitos livros sobre o tema!! Talvez alguns sites também! ;D

Tem uma música (muito boa!) que fala exatamente sobre o tema. Em homenagem ao ilustríssimo Carlos Cândia.

Faça o download clicando aqui.

Fernando, o Madruga

Ana L. Tourinho disse...

Bem, estou meio atrasada, mas eu acompanhei o caso do Alexandre na época, porque recebi a entrevista via alertas google no e-mail. Na época eu lancei a reportagem em uma lista de grandes amigos meus, que são também pesquisadores de diferentes áreas. Minha grande surpresa foi que eles achavam que A. Aleixo tinha feito um desserviço a nós, que ele deveria ter ficado calado.

Como assim? Pensei eu, e disse a meus amigos. Eu concordo plenamente com o Julio, e assim uma outra amiga que trabalha com sistemática filogenética de primatas no Rio de Janeiro. Não há nada demais no que Aleixo diz. Nada! Aleixo explica como é o método, que é preciso sacrificar as aves, e posteriormente ele explica porque motivo isso é necessário.

Infelizmente muitas pessoas em nossa população têm pouca idéia de que fazemos isso não porque é mais fácil ou melhor, mas porquê é a única forma no caso de fauna pouco conhecida, mal resolvida ou com grandes complexos de espécies. Que é preciso abater os animais pra extração de tecido quando é necessário realizar testes com perguntas ambientais e históricas importantes, enfim.

Porém, me surprendi mesmo com os pesquisadores que acham que não se deveria tocar nisso. POrque não? Penso eu com meus botões? Devemos tocar nisso sim, e se percebemos que a população, e até mesmo biólogos são ignorantes acerca desses ramos da ciência é preciso tocar muito nesse assunto, falar toda hora nele e esclarecer ao máximo.

E já que é facil a eles dizer que esse método é ruim então façamos a pergunta: ótimo, então que outro você sugere? Sim, bioacustica funciona para grupos com algumas questoes prévias já resolvidas, mas e aqueles casos que trabalhamos com complexos? E como ficariam os testes moleculares importantíssimos de filogenética e filogeografia que nos auxiliam a entender dinâmica de população e fluxo gênico, bem como a estruturação biogeográfica dos nossos ambientes? Se bioacústica resolvesse TODOS os problemas que enfrentam os ornitólogos ciência seria muito simples e bem mais velox, risos! Mas não funciona assim. E ainda trabalhamos com multiplos métodos para questões múltiplas e diferentes.

De qualquer forma fica ai pra nós cada vez mais nítido que precisamos de divulgação já!
Um abraço a todos
Ana

Ana L. Tourinho disse...

respondendo ao Fernando:

Eu realmente não consigo entender o porquê da necessidade de 50, 100, 200 exemplares da mesma espécie numa gaveta de Coleção. Com 10 não daria pra avaliar morfológicamente?

Oi Fernando, tudo bem?
Então, sua pergunta é bastante pertinente, e a resposta é: depende. Primeiramente depende do nível de conhecimento disponível sobre aquela espécie. E segundo de que tipo, e que e nível é a pergunta que você precisa esclarecer em relação a ela.

Por exemplo: Você não precisa abater mais do que uns poucos exemplares de espécies que já são amplamente conhecidas, descritas e estudadasna amazônia para determinadas questões. Em alguns, ou até muitos casos você não precisa abater nenhuma por que há conhecimento prévio e deposito em coleções mais do que necessários para realizar os testes que você necessitaria.

Se vc tem dúvidas quanto algumas peculiaridades das espécies que são tema do seu estudo pode ainda fazer uso de outras metodologias fora abate e realizar a coleta de algumas poucas amostras em cada localidade chave do seu experimento, para realização de testes morfológicos e/ou moleculares. Tudo tranquilíssimo.

Mas se você tem pouco ou nenhum conhecimento sobre aquela espécie e/ou tem dúvidas acerca de sua identidade, de sua unidade (suspeita que podem ser mais de uma espécies),por exemplo, você precisa de um número substâncial de amostras para garantir seu resultado com base em fatos e não em coincidências, achismos, suposições, generalizações ou fé. É o que chamamos de captar um efeito por meio de testes de certos sinais (que são os dados), nós vamos testar certos padrões frente a algumas hipóteses que temos sobre eles. E tentar captar um efeito com bases em alguns sinais presentes nessas espécies. sinais esses que somos capazes de detectar com certos métodos que nossa ciência nos mostrou serem bons para os testes. Nem sempre os sinais estão todos presentes e são passiveis de percepção em poucos exemplares, e não raramente há presença de ampla variação desses sinais que precisam ser entendidos para que não cometamos julgamentos apressados.

E, por fim, se precisamos de sinais moleculares pra responder questões geograficas (mesmo com escopo ambiental) precisamos sim de muitas amostras e de amostras de muitos locais, o que aumenta ainda mais o número de amostras (=exemplares abatidos).

É ciencia lembra? Tem o tal do método científico e filosofia da ciência dando respaldo e suporte a tudo que a gente faz. Por isso ciência dá um simbolo de segurança e confiança as coisas. O número de amostras tem que ser robusto e consistente e os dados tem que continuar a soberviver a uma montanha de testes, e continuar apontando para aquele caminho! Dai no fim através dessas "provas" conseguimos entender ou ter um pouco mais de segurança daquilo que estamos falando. O método nos ajuda a minimizar o erro em escolher respostas apenas porque gostamos mais delas ou nós parecem mais interessantes.

Nem mesmo as áreas mais clássicas e antigas da ciência como a taxonomia e sistemática podem fugir disso, é o caso do Aleixo. Fazer afirmatimas e generalizações baseado em número de amostras e réplicas muito baixas, ou apenas um exemplar, gera alguns problemas sérios posteriores, hipóteses suportadas por dados falsos, que nós somos inclinados a evitar e rejeitar desde muito cedo.

Mas de uma coisa você pode ter certeza, eu conheço bem mais pesquisadores que não gostam de matar os bichos que estudam do que aqueles que são indiferentes a isso. Se houver meios de não matar, ou matar menos pra nós é muito melhor.
abraços
ana